Meio pombo

Tiago Torres
4 min readFeb 21, 2022

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foto: Dead Pigeon on Bin via flickr

É possível, mas não é justo. Como trabalhador e brasileiro, já enfrentei muitos cenários naturais do cotidiano. Desde abuso moral, nepotismo e exploração. Me acompanhe. Hoje é uma quinta-feira¹, não uma quinta-feira qualquer, mas uma quinta-feira dia de desenvolvimento mediúnico. Prática e exercício qual vivencio no terreiro para melhorar como pessoa e entender meu lugar no mundo e o que posso fazer para que ele seja menos ruim. Atualmente, menos ruim é o que temos. Pelo menos, é o que acredito. Papo de um mundo melhor é para coaching, pessoas que não leem (por que não querem) e abobados pretensiosos muito preocupados com suas próprias ideias baseadas nas ideias de outros (normalmente retiradas de podcasts ou vídeos curtos). Ideias essas, diga-se de passagem, que não levam em consideração humanidade nenhuma, somente números hipotéticos. Portanto, lutemos por um mundo menos pior, já que trabalhamos com a cruel realidade.

Como trabalhador e brasileiro, já enfrentei muitas situações desconfortáveis. Colegas de trabalho assediando outros. Abuso de poder. Fui mandado embora algumas vezes por defender direitos, tanto os meus quanto de meus semelhantes — pessoas que exigem folga e hora extra, além de respeito e condições básicas para a manutenção da saúde mental. Como trabalho desde os 12 anos e sou brasileiro desde antes disso, já presenciei ocasiões extraordinárias no dia a dia, exemplo: uma mulher pulando do Viaduto do Chá e seus ossos estalando no chão e sujando o asfalto de sangue e órgãos. Sim, sujando. Até porque, pensa bem, alguém sempre tem que limpar a sujeira dos outros. Ou pior, a sujeira que é os outros. Advinha quem será escalado para essa jornada inesperada? Um trabalhador, possivelmente brasileiro, ainda que precisemos ser mais abertos em relação à isso. Bem, recapitulando: tudo isso enquanto eu discutia com moradores de rua que tentavam roubar os pães de metro que precisava entregar num prédio do Anhangabaú. Que situação! Crônicas de um entregador brasiliano.

Em todos esses anos, porém, nunca tive que enfrentar pombos. Não como hoje. Não como nesta fatídica quinta-feira, dia de desenvolvimento mediúnico — onde por costume me visto de branco — , não, não como nesta data. Dia 17 do 2 de 2022. Mais precisamente no horário do almoço, no ápice das 13 horas. Como trabalhador e brasileiro, encontrei meu nêmesis, meu inimigo mortal, meu maior adversário, o arrombador de sonhos, o desestruturador de dietas, o ceifador de desejos, o ladrão de paladares, O POMBO MARROM DE UM OLHO SÓ. Oh, protejam-me! O que fiz para merecer isso? Neste momento aceitaria qualquer outra coisa para lidar! Quer me mandar embora por eu exigir boas condições de trabalho? Tudo bem! Quer falar mal de mim, fazer minha caveira, inventar histórias que não existem para as pessoas me olharem de rabo de olho? Ótimo! Quer debochar, subjugar minha inteligência sobre o ofício que exerço por formação com excelência para ganhar meu pão de cada dia? Compreensível! Tudo, tudo menos isso: O POMBO MARROM DE UM OLHO SÓ. Atualização pertinente: o olho direito, somente! O olhar endireitado, o olhar caolho, o olhar faltante, ausente, paterno, diminuidor, sim, o olhar diminuidor da classe oprimida e de sua própria classe! Valei-me! Retaliação, tudo isso, esse cenário, enquanto tentava me alimentar no meu reduzido horário de almoço, no qual “superiores” me ligavam perguntando onde estava e o que estava fazendo e o que faria logo após e qual o “status” disso e daquilo e se eu viria amanhã e se eu achava mesmo justo homeoffice durante uma pandemia em que mais de mil pessoas morrem diariamente (mortes muitas dessas quais poderiam ter sido evitadas) por conta de um vírus qual vocês já sabem e se sei lá o que mais, sem respiro assim mesmo na lata, impedindo com que eu comesse meu humilde prato feito. Marmitex. Nada mais do que tristeza.

Resolvi sair sem pagar. Não toquei na comida. Fiquei pensativo, refletindo sobre o que será que isso tudo queria dizer, qual meu propósito então nesta grande corporação capitalista que não me diferencia dos computadores que uso para editar vídeos e fotos, qual mensagem será que não estou pegando, que estou deixando passar, qual a moral da história, qual a próxima questão? Abaixei a cabeça com o peso da consciência e vi uma mancha alaranjada — pimenta — na camiseta branca. Logo hoje! Nessa quinta-feira! Dia de desenvolvimento mediúnico! Extremamente desajeitado, tentando limpar a sujeira na pia do banheiro, entendi que como trabalhador e brasileiro, ah, deixa, tá tudo bem, vocês já sabem — um dia após o outro.

¹ Não é. Hoje é segunda-feira, dia 21. Acontece que fiquei ocupado, cheio de coisa pra fazer e não consegui trabalhar no texto até então. Agora tá pronto, postando para competir injustamente no mercado de trabalho/literário.

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