Ladrão de fogo

Ou a explicação do feitiço

Tiago Torres
4 min readSep 9, 2021
Arthur Rimbaud por Beatriz Maria.

Conhecido daquelas épocas como mais um malandro da boêmia noturna, por conta de minha fama adstringente, vira e mexe me questionavam sobre meu vulgo: ladrão de fogo.

“Que porra isso significa, irmão?”.

Preferi sempre rir, não responder. Até para mim era incerto, dentro das certezas. Fragmento-metáfora extraído duma carta de Rimbaud, conceito-apelido-carinhoso que me impulsionou na escrita durante anos. Acho que eu só queria roubar mesmo, com estilo.

Dia desses, durante uma crise de ansiedade vomitante, retornei ao poema “O Barco Embriagado”, e fui tomado por um êxtase-arrebentador semelhante ao de quando Arthur havia me desvirginado. Tomado por seu espírito preenchendo meu corpo. Retirado de mim mesmo, jogado ao chão em prantos após uma aventura, uma viagem, um alívio.

Naquelas noites frias, eu era o barco. Ou melhor, a canoa. Entrava e saia de bares (mares) como entrava e saia de amizades, de relações, trabalhos; para mais tarde refletir que também “não mais me sentia guiado pelos homens” quando “pouco me importava quem me tripulara” mas que apesar de tudo, “desde então só, me banhei no Poema”.

O que me fez tremer, apoiado de quatro, no chão: o que me penetrou foi além da inspiração. Transpôs os limites da emoção para inscrever um sentimento: estava livre. Liberdade essa que me queima, chamas essas que acendem os sonhos nos pés das velas. Trombar Arthur Rimbaud nas encruzilhadas da vida sempre aguçou meu olhar, meus sentidos. Fui capaz, então, de enxergar o mundo depois de destilado. Banhado no poema encontrei saídas, fosse pra frente ou pra trás, de um lado ou de outro, pra cima ou pra baixo, esquerdo pra dentro. Caminhos, escolhas.

“Sei dos céus ruindo em raios, as trombas,
Ressacas, correntezas. Sei o anoitecer,
A Aurora exaltada, revoada de pombas,
E já vi de relance quem o homem achou ver!”.

A gargalhada vem lá do fundo e explode. Quem será que Rimbaud viu? Quem será, que de relance, o homem achou ver? Quem será que você supôs em suas preces? Aqui do meu lado, eu sei. Só poderia ser, nada mais nada menos, que o mestre-de-jogar-no-enigma, o homem-borracha que canta sobre a transgressão necessária dos caminhos retos, o sagaz da malemolência pélvica e fumo embebido que aconselha “a vida, meu filho, como um jogo, também tem suas sinucas de bico e suas cartas viciadas”; esse, de chapéu e paletó branco, trajado das listras-armaduras vermelhas, sambando na noção sensual de que só existe malandro por que existe otário, o dito cujo invocado na transparência total do olhar exaltado/eclipsado de Rimbaud, o meu capoeira, Seu Zé Pelintra.

“Navalha-coletiva, o fio de corte malandreado” por Beatriz Maria.

Óbvio! Como não? O cruzo dos conhecimentos ancestrais! Rimbaud lá em 1854 nascendo para traficar armas para o rei Menelik II da Etiópia! Rimbaud dos delírios miscelâneos. Pelintra quem expôs artisticamente através do toque em Rimbaud, que a morte é uma radical possibilidade de vida — como composições advindas de términos afins — e a vida pode ser uma experiência cotidiana de morte — tal qual existir automaticamente na rotina sem fazer carinho no tédio. Arre! Cuidado, visse?

“O Zé quando vir lá de Alagoas,
Toma cuidado com o balanço da canoa”

Balanço esse causado pelos tremores de terremotos epistemológicos. Desestabilização diária causada pela contramão do bem-viver. A ânsia desesperadora do criar interrompido. Repetição de tormentos agudos ensurdecendo visões de mundo. O grave contraste entre o querer e poder.

“As pessoas não são más, elas só estão perdidas. Ainda há tempo.” Outro malandro me sussurra no ouvido, sorrateiro.

Nessa perdição toda, busquei sempre a saberia das canoas — ou barcos embriagados — onde qualquer ato criativo só é possível a partir do transe como disponibilidade de travessia. Movimento que perfura, rasga rios. Penetra, corta, cruza saberes-floresta.

Discordo do malandro Criolo apenas na condição deu achar que algumas pessoas são más sim, deliberadamente. Estão perdidas? Sim. Ainda há tempo? Sempre. Nem que seja para dizer que não há mais tempo.

Numa carta prum parceiro, Rimbaud escreve: “O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. O poeta é um verdadeiro ladrão de fogo”. Como Prometeu que roubou o fogo dos deuses para dar aos humanos, o poeta rouba o conhecimento para compartilhar. Como Exu em seus domínios escaldantes, entendendo a possibilidade das dobras, engolindo a matéria de uma forma e a cuspindo de jeito transformador, pelas frestas que passam a luz, o poeta reinterpreta a existência aumentando a potência daquilo que quer ser encontrado, se encontrar — o leitor.

Por vocês, roubei foi pouco.

“Autoral é meu pau, eu sou um escritório de advocacia”. — Froid.

Zé Pelintra por Beatriz Maria.

Esse texto foi inspirado pela live Entre Pelintras e Padilhas: Os corpos encantados e a sabedoria das ruas do Pai David Dias, acompanhado pelas entidades civilizatórias Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino que compartilham saberes circulares acessíveis. Saravá!

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